Encruzilhada


Corpo encruzilhada... corpo macumba... corpo comunga.

Foi logo nos primeiros dias de faculdade, na semana de integração, que vi o Fábio em cena. De cara fiquei com a entrega dele, no riso, no gozo, na vontade, no olhar e em tudo que ele fazia em a Tempestade (tô na dúvida se era esse mesmo o nome do trabalho que a turma dele apresentou à minha). Passei a vê-lo pelos corredores e de alguma forma meu rosto também o marcou. Fiz disciplina com ele no período seguinte, ali descobri que fazia parte de um grupo teatral.

Há algumas semanas recebi uma mensagem dele perguntando se me animava a partilhar do processo de criação do TCC dele. Lembro que falei para o meu irmão Arnaldo que eu achava o Fábio muito talentoso e que se ele tinha feito esse chamado era porque via algo em mim. E eu estava certa. E a surpresa de ver tanta gente que já via. Corpos tão diferentes e tão disponíveis. Que oportunidade de partilha. Como o Fábio disse: era para ser esses que aqui estão!

Falar de memórias, falar de busca, das transformações que passamos pela vida e entre as paredes da EEFDança. Fábio falou uma frase que guardo comigo. Ela volta e meia berra na minha cabeça. Toda vez que contamos nossa história, nos presentificamos. E é isso que eu tenho visto, até mesmo sobre as manias, vontade e gostos.

Às vezes bate um medo pela responsabilidade que é estar ali na cena com tanta gente boa. Há uma semana de apresentar não tenho medo de ser menos do que aquilo que o Fábio acredita, precisa e merece. São tantas histórias, corpos, trocas, energias, que eu sei que estou e que todo mundo está ali inteiro. O medo é só que o nervosismo atrapalhe essa "inteireza".

Uma coisa é certa: cada encontro passar a composição é diferente. É forte. É como se fosse outra coisa. É convidativo. Fiquei com uma fala da Calfa na cabeça. Ela falou que não era passo marcado, uma coreografia marcada. É uma composição! E a palavra composição me pareceu vir de comunhão e posição. São momentos que comungam. Histórias vivas nos corpos que comungam. Olhos vivos.

O processo é tão rico quanto a cena. Foram laboratórios de fala, quanta memória veio à tona. Descobri que as mulheres da minha família dançavam com as mãos. Era no coser, no cozinhar, no cafuné, na massagem, na reza, no toque, no trato com a terra, no cuidado com as plantas e as gentes que elas dançam nas minhas memórias.

Um dos primeiros laboratórios foi o de fazer tudo bem devagar enquanto um áudio (conhecido) de um traficante quebrando uma casa de axé. O áudio era muito forte e a vontade era de levantar e sair correndo para o enfrentamento. Família com linhas religiosas misturadas... como ouvir alguém desrespeitando a crença e o espaço do outro? A liberdade do outro de ser e professar o que se é? A respiração e o estômago reclamam demais. Digo que reclamam porque até mesmo na apresentação, ou repassar na cabeça o que foi vivido nos ensaios me deixa um tanto zonza.

Somos cacos, retalhos de pessoas, vivências, lugares, olhares que atravessam e atravessaram em algum momento. Independente se são cruzamentos bons ou ruins. Eles sempre nos formam de algum jeito. Será que sentiram isso quando estávamos ali? Os retornos sobre a apresentação continuam. Eu ainda processo as sensações que me contam. Fiquei na dúvida se nos acompanhariam pelo trajeto. Senti muita receptividade ao que estávamos fazendo. Ver sorrisos, ver choro, e ver aquela galera do lado de fora da EEFD acompanhando a chegada à rua.

Ainda estou anestesiada. E ainda não consegui colocar em palavras o que foi o Corpo Macumba. Grata ao Fábio, à Gisele, à Giovanna e ao Muriel por serem tão generosos comigo no processo. Grata demais! 

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